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O SERTÃO VAI VIRAR MAR E O MAR VAI VIRAR SERTÃO
                          Carlos Henrique Mascarenhas Pires

Não sei bem ao certo, mas eu creio que agora a pouco eu devo ter completado a minha décima incursão ao filme “O auto da compadecida”; obra baseada no livro de igual nome, do brilhante Ariano Suassuna.
O sucesso nacional em todos os sentidos mostra a história sofrida de Chicó e João Grilo pelos dissabores nordestinos no início do século XX em meio à fome, seca e homicidas das volantes e cangaceiros, onde após uma grande desgraça numa cidadezinha do interior nordestino (Taperoá), centenas de pessoas que morreram foram se encontrar com Jesus Cristo e tiveram o fadário de serem julgados no céu, na presença de Nossa Senhora como advogada e do próprio satanás como o inquisitor mor e serem, ou absolvidos devido ao sofrimento terreno ou condenados ao purgatório.
Minha crônica de hoje é uma alacridade ao povo nordestino, o povo sertanejo, o povo magnífico que mais sofre em todo Brasil e que vive apostatado a própria sorte e muitas vezes a própria desgraça de sempre.
Meus pais são nordestinos, eu sou nordestino, meus filhos, irmãos, tios e primos são nordestinos e eu jamais renegarei a minha origem nordestina, por mais que me paguem ou me influenciem culturalmente; minha identidade nordestina consegue ser mais forte do que a minha identidade de brasileiro.
Nasci numa cidade grande, Feira de Santana e seus quase 550 mil habitantes, maior inclusive do que muitas capitais brasileiras como Vitória, Florianópolis e Maceió; uma metrópole diante da maioria de lá e esta cidade, que carinhosamente é chamada de “Princesa do Sertão” é o portal de entrada para o semi-árido do Brasil. Qualquer um que venha dos estados do Sul e Sudeste, praticamente necessitam passar por Feira de Santana para poderem adentrar de fato no Nordeste, pois até ela, o clima é temperado e úmido, inclusive favorável a culturas agrícolas como tabaco de excepcional qualidade, mas partindo dali, até os cafundós dos limites da Amazônia, o que se vê é seca, fome, sede, miséria e um povo alegre; um povo de bem que vive mal; um povo em sua maioria honesto e acolhedor; o povo sertanejo.
Feira de Santana está para o Nordeste como São Paulo está para o Brasil. As BRs 101, 116, 110 e 324, quatro grandes rodovias de ligação nacional, possuem grandes ramificações na cidade e o resultado disso é uma grande miscigenação de povos de todo Brasil que passam por lá, vêem-na como uma grande e pujante cidade e ficam para tentarem a sorte.
Meu avô, por exemplo, único vivo entre meus avós, que nasceu em 1910 e vive até hoje na mesma casa, que foi de seu pai, é um destes sertanejos valentes que ajudaram na preservação dos costumes. “Seu Judicael Pamponet Pires” é um daqueles homens que plantou e sempre colheu e viu todas as transformações possíveis em suas terras; teve oito filhos, inclusive meu pai e viu morrer dois ainda pequenos, mas nada o fez desistir de cuidar de suas pequenas e humildes terras, com criação de ovelhas, boi de corte, vacas de leite e sempre um roçado limpo para poder plantar seu feijão, abóbora, maxixe, milho e melancia e foi desta forma que ele criou seus outros filhos para também se orgulharem de ser daquela terra, daquele lugar; daquele pedacinho de chão, pequeno, porém cheio de orgulho de estar pago com os rios de suor de seu rosto.
Em minha infância, me acostumei a passar as férias de final de ano na velha Fazenda Bom Sucesso em companhia de meus avós e de dois tios, irmãos de meu pai e era comum a presença de muitos outros primos também de férias. Ainda quando eu podia desfrutar da companhia de minha avó Dete, eu via que as pessoas que moravam nas vizinhanças reclamavam da falta de chuva, ou louvavam a Deus quando a mesma chuva que insistia em não vir chegava de forma assustadora, inundando tudo e recolocando a fé de todos no ápice para mais um ano de lavoura.
Naquela época, década de 70, eu já notava sem muito espanto que a “nossa” fazenda, que fica entre duas cidades (Baixa Grande e Ipirá), contava com uma flora agradável e uma fauna rica, com muitos bichos raros ainda possíveis de serem fotografados e mesmo nos períodos de estiagem, estes bichos que migravam para locais menos castigados, acabava voltando as suas origens; da mesma forma que o próprio povo, e hoje o que vejo é desolador, assustador, miserável até.
Sem querer eu tive as minhas primeiras aulas de sociologia e por pouco não me transformei num antropólogo e se não fiz na forma acadêmica, com certeza me doutorei nestas áreas pela faculdade do mundo, pois convivi com tantas diferenças, tantos costumes que não pude transportar para meu cotidiano. Tudo naquele lugar era diferente daquilo que eu vivia na Capital onde morei na minha adolescência e aqueles meses de férias, ano pós ano somente me ajudou a formar meu caráter e minha personalidade política, acreditando inclusive que o Estado de Direito faria algo de melhor para meu povo.
Comparar os “Brasis” que existe dentro deste Brasil é algo enlouquecedor; se existe pujança e fartura no sul e sudeste, pessoas com paletós e gravatas indo e vindo de seus escritórios ou plantações intermináveis de soja, milho, feijão e outras monoculturas, no Nordeste há tudo ao contrario. As pessoas, mesmo aquelas que vivem nos grandes centros ou nas regiões costeiras, são mais acostumadas ao sorriso e a humildade, talvez herdada do povo sertanejo que vive ali pertinho e quanto às plantações intermináveis, no Nordeste é comum se ver gado morrendo, rios secando e a única coisa que se vê ao longo de um horizonte são os mandacarus e as pedras.
O povo nordestino não sabe o que é financiamento de plantio, colheitadeira, adubadeira e o arado, este ainda é possível se vê na tração animal. Irrigação é mais comum, mas nada de gruas enormes molhando a plantação, irrigação na maior parte do Nordeste é feita por gravidade em pequenos córregos que molha menores ainda plantações de subsistência. Ninguém sabe o que é esta tal de tecnologia; a televisão começou a chegar no final da década de 80 e ainda existem comunidades, muitas comunidades sem conhecer a energia elétrica, muito menos água encanada. Silagem e piscicultura são palavrões!
No Nordeste, o povo acorda cedo, muito cedo, antes mesmo de o sol sair, comem um pouco de qualquer coisa e rumam para alguma frente de trabalho; não fazem lanche e ficam debaixo do sol escaldante até o meio dia para então fazerem uma pausa de 20, 30 minutos, quando desembainham alguma cuia com feijão, farinha e carne se a sorte estiver do seu lado naquele dia. Come tudo isso acompanhado de água de moringa e alguns torrões de rapadura. Dizem que este composto ajuda a segurar a “onda” até a noite. Depois desta alimentação, eles voltam ao trabalho e chegam em casa por volta das sete da noite, quando se banham e acendem uma vela, não para o santo protetor, mas para iluminar a casa de barro batido. No jantar, quando também se tem sorte, vê-se leite com farinha que se faz um pirão delicioso, com lascas de carne e pão com café e assim, eles ficam até o dia amanhecer e uma outra jornada igual para encarar. No Nordeste não se tem muita distinção entre uma quarta-feira e um domingo; o nordestino raramente pára de trabalhar no dia 1º de janeiro ou 7 de setembro, mas Natal e Finados é coisa importante e sagrada e ninguém quer trabalhar nestas épocas; outra coisa é muito comum no Nordeste sofrido; 24 de junho é festa de São João (aniversário do meu pai e dia da morte de minha avó) e na sexta-feira santa, se não tiver peixe ou galinha no terreiro, eles ficam jejuns. Acreditam que não comendo carne vermelha estão respeitando o corpo de Cristo e estão sempre dizendo: - Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
Nos dias de festa junina, as casas mais cheias de gente abrem suas portas com amendoim cozido, canjica e uma fartura de licores de frutas para receberem visitantes locais que vislumbram fogueiras na frente das casas e em algumas, pode-se ouvir algum fole tocando, acompanhado de um triângulo e zabumba, animando um forró gostoso de “pé-de-serra” até o dia amanhecer, com gente alegre na sala, exaltando a chance divina de estarem vivos em mais um ano. O São João nordestino é como se fosse o reveillon para o resto do Brasil e lá é feriado santo, aliás, o mês de junho é sagrado, com festas para São João, São José e São Pedro, mártires da Santa Sé.
Infelizmente, como no resto do Brasil, os brancos possuem mais chance que os negros e as mulheres menos chance ainda de ascensão profissional, infelizmente ainda é mais comum lembrarmos das senzalas, mas há algo que não existe no resto do Brasil, que é o respeito à vida. Negros e brancos vivem em paz e se os negros não conseguem ser senhores fazendeiros é por conta de uma cultura generalizada imposta há séculos e perpetuada até os dias atuais. Na roça não há mendicância ou lamúrias sociais e se não se paga o justo imposto pelas leis vigentes, pelo menos, mesmo nas longas estiagens, há algum trabalho por fazer, basta procurar.
Quem se desespera e se retira encima de um pau-de-arara para as grandes cidades, infelizmente vêem a morte e a humilhação de perto e como dizem os sertanejos, “o diabo vive nas capitais”. Quem se retira sem o devido provimento financeiro, se arrepende antes de completar um ano e quer voltar, mas não pode; seus destinos estão selados e suas vidas entregues a meia dúzia de exploradores que sugam seus sangues até a morte.
Eu vivi tudo isso de perto e via quantas pessoas saíam de seus pedaços de chão e choravam na ida e nas poucas voltas pelo arrependimento; vi a velha “Bom Sucesso” com vaqueiros, cozinheiras, arrumadeiras e lavradores empregados e mesmo hoje, sem nada disso, com um certo declínio do poder de compra, não observo meus tios lamentarem a ponto do choro ou meu avô, com seus 97 anos e ainda andando, reclamar que um dia lhe faltou um prato de comida ou água para matar-lhe a sede. Eu fui testemunha ocular que naquela fazenda velha, centenária, já houve geada tão forte que os tanques de combustível dos carros petrificaram devida a baixa temperatura.
Posso não ver mais a casa cheia de gente comendo durante as refeições ou tangendo o gado pela manhã e à tardinha; posso não ver veados correndo no quintal, emas comendo no jardim; posso não mais saber o que é um cedro ou um jacarandá; posso não mais enxergar a cobra coral, raposa, micos ou porcos do mato; posso não poder ver meu avô chegar aos 100 anos e comemorar com ele todo este legado cultural que nos deixa e culpo em parte disso a tecnologia e o avanço do progresso pelas matanças de animais e desertificação do solo, mas ainda consigo sim encontrar milhares de pessoas que não trocariam o calor do Nordeste pelo frio do sul ou os carnavais das cidades praianas.
É uma pena eu estar envelhecendo e não poder ainda ver o acesso fácil da justiça em lugares remotos do sertão ou ainda o patronato tão prometido de alcaides eleitos à custa de tantas promessas de ajudas e auxílios; é uma pena ainda ver que o asfalto do progresso, este sim ajudaria os carros das fazendas, mas estão distantes pelo menos três léguas (dezoito quilômetros) das propriedades mais pobres e nos poucos riachos salobros que restaram ainda não foram capazes de construir pontes que resistam aos períodos de cheia; é uma pena ver a antena parabólica que alimenta a TV de sinais, mas que aquela TV não possui alimentação de energia elétrica ou que ainda existam tantas geladeiras movidas a GLP; é lindo e poético ver a varanda da “nossa” fazenda iluminada pelos candeeiros de querosene, mas triste saber que se preciso ir à noite num sanitário, terei que primeiro achar o fósforo ao invés de uma tecla de interruptor, ainda assim é melhor do que não poder pagar a conta no final do mês da companhia elétrica.
Eu lembro que tínhamos alguns tanques de água represada que nos servia para o abastecimento e também nos fornecia traíras e tilápias; que nos finais de semana tínhamos carne de carneiro cozida e assada ou doce de leite e coalhada no café da manhã; lembro que comíamos cuscus de milho com ovos e café torrado e moído no quintal, assim como também lembro que meu avô jamais deixou que aprisionássemos animais ou fossemos cruéis com eles e se algum colono por ventura vendesse passarinhos em gaiolas, era com certeza para complementar a renda e colocar mais comida na mesa.
Hoje tudo mudou e a cultura sertaneja está cada vez mais rara de se ver; os filhos dos vaqueiros buscam os computadores e os filhos dos coronéis agora são doutores com diplomas pendurados num consultório ou numa banca de jurisconsultos; noto que os cavalos já não causam mais euforia nos jovens e que os jumentos são desprezados e tidos como uma praga; que não existem animais para delírio dos olhos ou árvores que produzam toras; noto que os oratórios deram lugar aos novos ritos das novas religiões e não me chegará com muita surpresa, se em alguns anos ao invés de jargões comuns e palavras viciadas de um português desconhecido, eu ouça dos modernos sertanejos as palavras que vejo nos chats imbecis adotadas pelos jovens néscios que não pesquisam, muito menos produzem algo de valor cultural.
Mas os poucos sertanejos que ainda resistem precisam ainda mostrar ao resto do Brasil que aquele cantinho chamado de sertão, que envolve os nove estados do Nordeste, parte de Minas Gerais e um restinho de Goiás e Tocantins merece ser lembrado eternamente pelos historiadores brasileiros que terão a responsabilidade de contar aos futuros povos que foram eles, os sertanejos, quem inventaram o trabalho duro, a honestidade, o acolhimento pelo calor humano, a compreensão e a bondade.
Eu me orgulho de ser nordestino, de ser filho de nordestinos, de ter todas as minhas raízes no sertão nordestino e gostaria que meus filhos que moram no Nordeste, Victor e Henrique Segundo pudessem um dia também, em consciência plena, se orgulharem e sentirem tudo isso que sinto, pois nosso povo, além de tudo, é bravo histórico e mesmo sem querer, deixarão sua marca por pelo menos mais mil anos!
Para este 1º de Maio, dia mundial do trabalho e aqui no Brasil, Dia Nacional de Lutas, quero deixar registrado todo o meu respeito e minha eterna admiração pelo Nordeste do Brasil, pelos nordestinos trabalhadores, pelos sertanejos lutadores, por tudo que já conseguiram deixar de aprendizado para mim; quero deixar registrada a minha reverência ao meu pai (“seu” Humberto) e ao meu avô, aos meus tios e tias, que sempre me ensinaram que eu devia sempre ter orgulho de ser um sertanejo e se eu jamais pus as mãos num cabo de enxada, talvez seja por isso que em alguns momentos eu tive hibridez de atitude.
Saudar também a presença marcante na história dos sertões enormes que existem dentro do sertão brasileiro como as figuras de Antonio Conselheiro, Ruy Barbosa, Clóvis Bevilácqua, Virgulino Ferreira da Silva (Lampião), Patativa do Assaré, Ariano Suassuna, Anísio Teixeira, Maria Quitéria, Enfermeira Ana Nery, Paulo Freire, Luiz Gonzaga, Coronel Horácio de Matos, Miguel Arraes, Padre Cícero, Irmã Dulce, Chico Anísio, João Ubaldo Ribeiro, Zumbi dos Palmares, Marechal Deodoro Da Fonseca, Marechal Floriano Peixoto, Castro Alves, Euclides da Cunha (não era nordestino mas foi adotado como tal) e de tantos outros vultos e anônimos que empunharam a bandeira invisível daquela terra, brigando, estudando, pesquisando e pacificando de modo tão importante para que a história jamais esquecesse de seus atos bravos e heróicos.
Para aqueles que por ventura lerem esta crônica, lembrar-se que lá, nos nove estados nordestinos, existem irmãos sofridos que muitas vezes passam fome e sede, mas que raramente aquele povo, o sertanejo, se desespera e sai para roubar, matar ou enganar pessoas e que sempre precisarão de nossas ajudas, sempre, sempre...!
Viva o povo nordestino! Viva o povo sertanejo! Viva o sertão do Brasil!

Texto e Foto:
Carlos Henrique Mascarenhas Pires

 
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